É m livro que reúne mitos da cultura Desana, povo indígena que vive na região do Rio Negro (norte do Brasil). As histórias foram narradas por Umusi Pãrõkumu, transcritas para o desana e depois traduzidas para o português por Tõrãmü Kehíri.
É uma obra que supera o interesse antropológico. Eu li como literatura. O estilo, que vem da oralidade, é inimitável. É uma fonte original pra literatura brasileira.
Nada mais natural do que buscar a originalidade nas narrativas dos povos originários. E nada mais natural do que buscar num livro desses, que trata exatamente da origem de tudo.
O título é honesto e eloquente. E o livro todo vai no mesmo tom:
“No princípio o mundo não existia. As trevas cobriam tudo. Enquanto não havia nada, apareceu uma mulher por si mesma. Isso aconteceu no meio das trevas. Ela apareceu sustentando-se sobre o seu banco de quartzo branco.”
Viemos todos de uma mulher. Óbvio, né?
“Haviam coisas misteriosas para ela criar-se por si mesma. Haviam seis coisas misteriosas: um banco de quartzo branco, uma forquilha para segurar o cigarro, uma cuia de ipadu, o suporte desta cuia de ipadu, uma cuia de farinha de tapioca e o suporte desta cuia.”
Aí que está a literatura. Fazer o mundo com coisas misteriosas e simples como cuias, forquilhas, cigarros e aliterações: um banco de quartzo branco. Não sei como isso soa em desana, mas em português é pura poesia.
Antes o mundo não existia tem esse ar ao mesmo tempo sólido e leve de livro necessário. É raro. No Brasil, me vem agora à mente o Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus. Um livro necessário é aquele que foi escrito porque o autor precisava escrever. E é também aquele livro que, se a gente não ler, vai ficar uma lacuna na nossa formação intelectual, social, emocional. E necessário é aquele texto que é assim porque não poderia ser diferente.
A literatura é uma mistura de assunto interessante com forma única de expressão. Nesse caso, não se trata só de uma obra relevante para quem se interessa pela temática indígena. É um baita texto, uma materialização radical da língua portuguesa. Belo exemplo de como a tradução contribui pra ampliar o repertório de formas e temas.
Parece que é um dos primeiros livros escritos por indígenas. Talvez seja o primeiro. Então deverá constar nas novas histórias da literatura brasileira como fundamental. Também tem a vantagem de escapar à ideia de que a literatura indígena se volta demais pro público infanto-juvenil. Antes o mundo não existia tem palavrão, tem cenas sexuais criativas. Tem aquele causo do cara que engole pessoas pelo cu. E tem a história da cobra canoa, um meio de transporte seguro, que está aí levando gente e povoando o mundo desde que Yebá Buró criou o mundo com seu cigarro.