Somos linguagem e à linguagem retornaremos.
O corpo expira, mas permanece a inspiração da linguagem, que volta a se reunir na infinita Cosmopoética. Deixamos de ser mentes individuais que fazem ou não esforço para se comunicar e passamos a integrar a compreensão perene.
A sabedoria, no contexto terrenal, é uma grande sensibilidade que acessa trechos da Cosmopoética, pelos caminhos da linguagem, da literatura, da tradução.
Não importa se o indivíduo, durante a escrita de sua história terrena, não consegue se fazer compreender ou demonstra desinteresse pela compreensão dos demais. E não importa se o indivíduo realiza textos acessíveis e profundos.
Nem importa se o indivíduo se manifesta apenas por textos orais. As palavras – escritas, faladas, pensadas – são espírito.
Todos retornam à linguagem comum, que os recebe como um rio recebe em seu curso os pingos de chuva e o chorume dos valos, sem fazer distinção entre uns e outros.
A linguagem purifica tudo em seu discurso cosmológico. Ela revisa a si mesma, preenche lacunas com seu vasto repertório de partículas semânticas e sintáticas, repara incoerências, soluciona incoesões.
A expiação dos mal-entendidos ocorre naturalmente quando retornamos à linguagem universal, mas podemos saborear a satisfação de resolvê-los no contexto terreno. Somos linguagem e temos todos os recursos literários para nos aperfeiçoarmos.
Temos a arte, temos a filosofia, temos o diálogo. A língua é o caminho, a ficção é o atalho.
O signo é o sopro da vida humana. Quando uma pessoa se articula foneticamente, está comungando a Cosmopoética. Quando uma pessoa se articula em gestos, está comungando a Cosmopoética.
Se for negligente e o fizer de maneira superficial, sua capacidade de linguagem vai se atrofiar. Se usar a língua para silenciar a linguagem do outro, seu sopro vital vai se petrificar. E os corpos saberão responder a essa ingratidão.
A punição pela violência verbal e pela falsidade se dá no contexto terrenal mesmo. E as contradições inocentes são acolhidas pela Cosmopoética como os rios recebem as gotas de orvalho que deslizam lentas pelas açucenas.
Orar é ler. Celebrar é falar, ouvir, olhar. Ritual: sentar-se com um livro sob uma árvore, diante de um abismo, e extrair em eco a Cosmopoética.
O encantamento, o êxtase religioso, a possessão, o contato com o outro mundo se dá pelo arrebatamento estético: o prazer do texto.
O descanso é silêncio.
Poética pajé
Os ancestrais não são apenas teus pais. Nem teus avós, bisavós e que tais. Também os ícones da cultura, os tabus e tampões, os imaginários, as obras, os autores, os mitos populares com que tu te identifica formam a tua ancestralidade.
São teus ancestrais aqueles que dialogam contigo do infinito: da Cosmopoética.
O escritor é como um xamã, mediador entre o mundo dos sonhos (as possibilidades encantadas) e o mundo cotidiano. Um pajador: um pajé: uma pajética.
Assim como há um treinamento para se tornar xamã, também há um treinamento para se tornar poeta: os experimentos formais e a abertura da mente são exercícios de comunicação entre a Cosmopoética e o contexto terreno.
O xamã recebe um chamado (uma vocação); o artista também. Não se pode escapar disso, sob pena de ficar doente. O xamã e o artista não são donos de si: têm uma responsabilidade pela comunicação com o mundo dos sonhos. Aí passam a ser procurados pelas pessoas para cura, interpretação, encantamento.
Buscar encantamento no mundo é encontrar relação com a arte, com interpretações literárias (não literais), criativas (não prontas), complexas (não planas). Exemplo: de onde é que vieram os carros? Da vontade de custar tanto? Ou da ânsia de ser onça?
O principal é a relação com o processo. Priorizar a escrita sobre a política literária; priorizar a relação com os espíritos. Se o pajé fica muito do lado de cá, perde a conexão com o lado de lá; deixa de entender os espíritos, que param de falar com ele. O tradutor entre mundos deve estar atualizado com a linguagem fonte.
Um psicanalista pode passar pelo mesmo processo de se tornar xamã, só que pela psicanálise. A capacidade de se conectar com o inconsciente é igual, só muda o nome. Inconsciente, mundo dos sonhos, literatura: tudo é linguagem.
Despertar o infinito
Que tudo seja infinito – nenhuma novidade. Mas é preciso despertá-lo.
O infinito é um calor dormente, ou uma brisa estacionada. É preciso que algo o faça mover.
Só é possível amar uma pessoa que desperte o infinito. Que, no princípio da comunicação (a paquera), nos dê promessas incontáveis de prazer e parceria e, conforme a compreensão vai se confirmando (o namoro), nos convença a cada gesto que o prazer e a parceria continuarão apesar da despedida provisória – pois o infinito que a amada desperta não se abala com breves afastamentos. Cena: no fim do domingo, quando a voragem do nosso infinito intransferível nos ataca como uma solitária, a mulher nos diz piscando: “amanhã a gente se vê de novo”.
Só é possível suportar um trabalho que desperte o infinito. Que nos dê o salário suficiente para a perspectiva de gastos diários e anuais – que nos permita férias. Mas também que nos inspire a produzir a partir das nossas próprias demandas criativas. Exemplo: o professor que atua em uma escola que respeite o uso de literatura na sala de aula. O diálogo entre a leitura e a análise das obras existentes, com a criação de obras originais dos alunos e do professor – eis uma maneira de sacudir o sono do infinito.
E assim também com o texto: é preciso que ele não explique tudo, que não se esgote: que faça o leitor imaginar os sentidos (as direções), a partir das referências que ele, leitor, tiver; ou seja, a partir das suas próprias maneiras de se encontrar no caminho infinito da interpretação e do prazer estético: o dialeto da Cosmopoética.
Assim como só é possível amar alguém que, a cada encontro, nos faça querer ir a fundo; assim como só é possível aguentar um trabalho que, a cada jornada, nos faça sentir que aprendemos e produzimos nossa própria obra – assim é com a literatura: só vale a pena um texto que desperte o infinito dele mesmo, ao mesmo tempo que desperta o infinito em nós, leitores. Nós que somos linguagem e à linguagem retornaremos.