O narrador de uma obra literária de ficção é, por si, uma criação literária. É como o trabalho de um ator que, quando vai representar um personagem, precisa fazer um estudo das referências desse personagem, da história dele, como ele se movimenta, como fala, o que come, como ele dorme, quem ele ama, quem ele odeia. Isso é um recurso de criação artística que funciona muito bem pra criar um narrador também. Porque isso serve muito pro corpo.
Quem escreve escreve com o corpo, então a criação de um narrador funciona como se a gente fosse um ator, uma atriz, um ator narrador. Quando a gente escreve alguma coisa, tem uma imersão numa persona que não é eu, tu, nós. Tá, tem sim referências minhas, tuas, nossas, referências de outras pessoas, de amigos, de inimigos, de coisas que a gente lê, vê, ouve no mundo. Aí a gente usa isso pra criar uma persona que vai, através de nós, ser um narrador.
Em termos místicos, a gente é que nem um cavalo – e essa entidade criada um pouco por nós, um pouco pela mistura caótica que acontece na pesquisa, pela vontade de criar uma contação de história, essa personagem do além acaba ganhando voz. Eu, tu, nós somos apenas vetores de narradores.
É legal quando as pessoas dizem “eu consigo ouvir a tua voz, quando estou lendo; parece que tu tá aqui comigo, parece que estou te vendo falar tudo isso”. Dá pra atribuir isso ao fato de a escrita passar muito pelo corpo: a pessoa confunde o narrador com o autor assim como confunde o ator com o homem que ela viu no teatro ou no filme. E não há engano nenhum aí: realmente um corpo foi usado pra gerar o texto que ela leu. Só que não sou eu, tu, nós. Na medida em que eu, tu, somos vários eus. Mesmo tu, em ti, são vários. Vamos resguardar nosso direito de sê-los.
Quando se fala que é preciso encontrar nossa própria voz na literatura isso não é metáfora nenhuma: realmente é preciso buscar alguma voz material pra que possamos criar um narrador. Isso quer dizer pesquisa, imersão, criação de persona: um colono, um gaudério, um favelado, um bundão de apê, um filho da mãe. Que personagem é teu narrador? O que ele bebe? Onde ele senta? Ele tem dor nas costas? A voz do corpo deve servir pra que o caos, a vontade de literatura se expresse em texto.
Tanto é que, depois de escrever e publicar um livro, é difícil pensar em divulgá-lo porque a persona fica esvaziada, como uma roupa que a gente usa e que bota pra lavar junto com outras camisas.
A persona passa e fica uma distância: a gente olho a obra como quem olha a dobra: algo que não foi exatamente nosso eu atual que fez.
Mas acredito que existam outros tipos de escritores que são capazes de passar horas, dias, meses, séculos defendendo as falas dos seus narradores, como se existissem de fato. Pra mim a literatura é uma arte que, como arte (naquele sentido que as mães do bairro praticam: “não faz arte, piá!, não faz malandrice!”), deve resguardar seu direito de irresponsabilidade e abandono.
Acho que temos que requerer, pra literatura, o mesmo status que é dado aos atores quando representam seus personagens; sobretudo quando fazem personagens vilões, personagens nada exemplares pras crianças superprotegidas.
A literatura é que inventou esse tipo de coisa na arte e continua sendo o meio mais livre pra dar voz à ambiguidade tenebrosa da alma humana, nem que seja por ser o meio menos acessado. Ou seja, quem lê literatura de verdade não corre risco de se apavorar à toa com absurdos e contradições.
Buscar exemplos morais na literatura é certamente contraindicado, porque a literatura é o espaço em que os podres têm mais direito de existir. A função da literatura é nada didática: ninguém se torna uma pessoa melhor lendo ficção; tu te torna, isso sim, uma pessoa menos babaca, menos afeita a negar a existência das diferenças horríveis que a gente tem.
Olha bem: não se trata de idolatrar as diferenças, mas de saber que elas existem, são assustadoras e que a gente também é assustador em relação ao outro. Isso não faz de nós pessoas melhores, que saberão conviver harmonicamente. Isso apenas nos possibilita olhar o espelho e reconhecer as sombras descascadas por trás dele.