Na aurora da minha vida, eu lia. Na parada do ônibus, nas filas de banco ou banheiro, até na sala de aula. Eu precisava recuperar o tempo perdido por ter nascido em Caxias, nos anos 1980, e não em Paris, em 1890… E ler em público era uma forma de me sentir menos estrangeiro, porque eu ia reconhecendo outros leitores.
O primeiro que apareceu foi o Dramático.
— Pensei que eu fosse o único leitor da cidade — ele disse, no recreio da escola.
Eu estava lendo Moacyr Scliar. Aí o Dramático tirou do capote o Dostoiévski. Formamos uma dupla que se encontrava pra discutir amarguras e sofrimentos.
O segundo leitor que apareceu foi o Absurdo.
— Pensei que eu fosse o único leitor da cidade — ele disse, sentando ao meu lado, na sarjeta.
Eu estava lendo Nelson Rodrigues. Ele tirou da bota o Beckett. Então se formou um trio, com o alívio cômico que o Absurdo dava às conversas com o Dramático.
O último leitor foi o Trágico.
— Pensei que eu fosse o único leitor da cidade — falei, parando um rapaz de óculos que caminhava lendo na rua.
Ele vinha com o Allen Ginsberg. Eu ia com o Bandeira. E assim estava formado o Quarteto Realista-Mágico.
***
O Dramático era um polaco careca precoce, cheio de enxaquecas e cacofonias. O Absurdo era um gringo encrustado no Fátima Baixo, ou Baixa, que tinha muito jeito mas não: quem era de fato era o Trágico, assumido fã do Jean Genet aos dezessete anos. Todos muito crônicos, enquanto eu era o cronista. Nunca tive talento pra ser personagem.
Nosso primeiro QG, ou segundo GH, era a escadaria da igreja de Santos Anjos, onde líamos em voz alta até a polícia aparecer. Ali ensaiávamos teorias (“livro bom é o que parece que estamos escrevendo enquanto lemos”) e criações. O Dramático escrevia sobre famílias irreconciliáveis; o Absurdo sobre o fato evidente de que a vida é o sonho de um sapo na sanga; o Trágico escrevia sobre amores psicológicos e eu sobre amizades que duram parágrafos.
Não havia internet nem telefone. Na casa do Absurdo, nem luz. As reuniões do Quarteto se marcavam por telepatia. A gente pensava: é sábado, claro que está chovendo em Caxias, vou levar meus rabiscos pra igreja de Santos Anjos, a gurizada vai aparecer. E aparecia. A amizade era isso: tédio e sincronia.
Cada um levava um livrinho:
— Lúcio Cardoso ou nada — dizia o Dramático.
— Artaud! — retrucava o Trágico.
— Isso é porque vocês nunca leram Papillon — dizia o Absurdo.
Eu tomava notas pra acalmar a angústia de jamais me atualizar a tempo ante a literatura clássica que me aparecia vanguardista todo dia.
***
Nosso plano era salvar a literatura municipal ou, como parafraseamos solenemente, após vencer os prólogos de um romance eterno do Macedonio Fernández: o plano era conquistar Caxias para a beleza.
Os métodos: primeiro, ler tudo que tivesse sido escrito por Pozenato, Paviani, Pirandello e, evidentemente, Tadiane Tronca. Depois, subverter.
Conquistar Caxias para a beleza, eu me repetia, como um mantra, enquanto o Quarteto Realista-Mágico se digladiava acerca de qual perspectiva estética devia ser adotada na Colônia.
O Dramático achava que devíamos explorar os fantasmas latentes no imaginário cristão dos agricultores. O Absurdo defendia que a chave estava em escancarar os rinocerontes recalcados. Eu dizia que o segredo era rir de nós mesmos e o Trágico, nesse meio tempo, declarava seu amor a cobrar, no orelhão da esquina.
— No princípio está a palavra — dizia o Dramático.
— No princípio está a ação — dizia o Trágico.
— No precipício — ensaiava o Absurdo.
Era aí que aparecia a polícia mandando a gente parar com a chorna.