Segunda parte do Seu Guerino da Mulada

Deixamos o engenhoso e mentecapto gaúcho tiritando pela Dioneia da Jaquirana à beira de um banhado, mas nos papéis recebidos de Sid, o verdadeiro autor desta história, consta que conta a lenda que Seu Guerino da Mulada partiu por serras e canhadas, planaltos e pampas em busca das mais palpáveis batalhas por liberdade contra imperiais e correntinos, ingleses e mouros, e que saiu da Mulada pilchado o mais que pôde com botas e esporas e lenços e couros, montado em seu matungo carroceiro chamado Brizola, pela pelagem do bicho, meio brizzolato — vale dizer “agrisalhado” (Seu Guerino, pelo mal de seus pecados, tinha lá uma ascendência italiana, no que ele não via problema já que se dizia herdeiro dum capitão mui leal a Garibaldi).

E arremetia de manta e adaga qual o matreiro Martín Fierro, só que, em vez de contra a polícia, o gaúcho Guerino peleava contra a atmosfera mesma, reconhecendo um minuano no vento, em vez dum vento minuano, e dê-lhe sapucais. 

E dê-lhe ais de recomendação por sua senhora Dioneia, apodada a “apanha-moscas”, quando ele ignorava a sua e a de seu escudeiro consciências na hora de pular taipas e romper cercas. E cada chumbo que recebia por invasão de propriedade Seu Guerino atribuía aos imperiais ou aos demais, dependendo do cheiro que a pólvora ia deixando naquele seu chapéu que era tudo menos almiscarado, desde a época em que ele não passava dum senhorzinho aposentado numa chácara de grama aparada na Mulada.

– São os ossos do ofício – garantia, porfioso, Seu Guerino, ao que respondia prestamente o Buiú:

– Se isso são ou não os fumos do vício eu não sei, mas que mais vale um tiro passando voando do que dois na mão, disso vancê pode ter certeza, e se eu continuo caçando picapau por esses campos é porque a palavra me atiça mais a pança do que o punho.

Assim devia falar o Buiú, e como devia falar esse peão, de varde com aquele patrão decidido a recuperar os valores do gauchismo nativo, tais como o hábito de sentar solito ante uma árvore também solita, tomar-lhe emprestados uns galhos, armar um fogo, espetar uma costela e aquentar uma chaleira – imagens que Seu Guerino via estampada diuturnamente nas embalagens de erva-mate e que lhe pareciam a nata e o queijo da alma pampeana. 

Diz o Sid que foi assim, até que um dia o ginete girou a mente e o mancarrão de volta pra casa, onde já sua senhora estivesse talvez vivendo com um chacreiro deveras chacreiro, vale dizer um que se contentasse com os arremedos modernos em vez de sair por aí de espora e laço, e ainda boleadeira, como se, estribado na inverificabilidade, herdasse o direito de se considerar charrua, e diz que o Buiú ficou brabo porque o Seu Guerino não tinha cumprido a promessa de lhe regalar uma ilha, nem que fosse uma dessas aí de Porto Alegre. 

Mas a verdade é que o valoroso gaúcho Seu Guerino da Mulada decidiu empreender o melancólico caminho do retorno porque percebeu que, nessas gauchadas de viver dormindo mal e comendo pior, ele não encontrava mais tempo pra ler.

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