Os livros têm a hora certa pra gente ler. Se eu fosse ler hoje Paulo Coelho – hoje eu não leria Paulo Coelho. Mas aos 14 anos, na praia, encantado por uma aprendiz de feiticeira enquanto caía o maior aguaceiro… .
Um velho professor nos dizia na faculdade:
– Já leram O amor nos tempos do cólera? Nem adianta lerem agora. Só quem viveu o suficiente, só quem amou de verdade vai entender O amor nos tempos do cólera.
Poxa, eu pensava, eu amo tanto a – digamos – Suelen. Mas resolvi seguir o conselho do professor. O tempo passou e não me lembro mais dela. Amei outras, mas continuei desconfiado. Estou esperando chegar aos setenta anos pra ler o tal romance do García Márquez.
Outro livro importante que nunca tinha chegado o momento de ler era Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, da Clarice Lispector. Eu tinha começado umas vezes, tinha lido trechos, fiz prova de concurso usando ele, dei até aula de literatura sobre o romance, já que o livro didático da escola trazia todo aquele capítulo em que a Lóri tem uma epifania orgástica no mar. Mas, até ontem, eu não o tinha lido como se deve: por dentro, que nem o mar e a Lóri em sua vida de – olha só – professora de português.
A questão da Clarice é que não é fácil entender por que ela escreve bem. Não tem nada de virtuosismo. Por que ela consegue pegar a gente?
A rede do romance é bem de pesca mesmo: Lorelei, a sereia que borda na beira do mar, à espera de Ulisses, que, malandro, diz que quem está esperando é ele. Mas o perdoamos porque no fundo ele é gente boa.
As cenas chaves ocorrem na piscina, no mar, na chuva, entre lágrimas. Fica evidente que o amor não é fogo que arde sem se ver: é água viva.
E a narração é tão simples, feita com suor de verão: não o suor do esforço, não a pesquisa intelectual na história e nas análises sociais: é apenas um grande sentimento sendo descrito de diversas maneiras, com metáforas improvisadas na hora e analogias prosaicas, que qualquer pessoa (é a impressão que dá) poderia fazer.
A Clarice, então, faz parecer que podemos escrever também. Ela é amigável, é convidativa. Quando ela faz coisas banais com as palavras, dá aquela ternura pela coragem que ela teve em não cortar a banalidade. Às vezes, parece que é um texto desbravador – e é, trata-se de um livro de aprendizagem, um romance de formação: a ingenuidade da narração se confunde com a ingenuidade da personagem; a paixão do texto é a paixão que a personagem está tentando expressar pra si mesma, em conversa com o mundo.
É tão simples o texto porque a paixão é simples, os conflitos são simples, as dúvidas, as hesitações, as excitações. Mas colocar isso em texto é complicado porque todo mundo sente: tem que ser perspicaz demais nas imagens e na prosa banal pra convencer de que o que a narração está dizendo não poderia ser feito por outra pessoa, nem de outro modo. O que há de insólito é a minúcia, a exacerbação do gesto corriqueiro:
“Ela olhou-o com olhos obscurecidos mas seus lábios estremeceram.
– Teus lábios, disse ele, mudando inteiramente de tom, são confusos mas tua boca tem a paixão que existe em você e de que você tem medo”
Aqui está a sacada: é a boca que guarda a paixão. Os olhos a gente aprende a controlar ao longo da vida. A boca não: a boca se enche de saliva, quer sorrir, é preciso fazer um esforço tremendo (literalmente, tremendo) para evitar que ela nos denuncie em estado de amor. Em estado de graça, como fala o romance.
É diferente da simpatia, da amizade. O amor está na boca. E a Clarice, com essas frases descritivas, nos acessa o mais íntimo ao nos revelar um fato compartilhado por todo mundo, mas observado apenas por ela.
Clarice coloca as próprias personagens explicando a técnica de seu livro:
“Na minha aprendizagem, diz Ulisses, falta alguém que me diga o óbvio com um ar tão extraordinário. O óbvio, Lóri, é a verdade mais difícil de se enxergar”
É exatamente o que Clarice faz. Diz o óbvio com ar extraordinário. Como é bonito o fato de que os pássaros voam. Como é incrível a delicadeza de Deus ao fazer cair uma folha precisamente sobre os cílios de alguém…
Não sei se um dia vou ter idade pra ler O amor nos tempos do cólera. Mas nunca é cedo pra aprender a ler o amor.