1. Rumo à Itália
Chamavam ele de Nanico — Pipetta, Polpetta, Pipoca… Mas sempre Nanico. Muito chique o rapaz: olhos de azeitona, nariz de rolha de espumante. Diz que era descendente do famoso Nanetto Pipetta, aquele que nasceu na Itália e veio buscar a Cocanha no Brasil. Só que a história do Nanico é ao contrário: nasceu no Brasil e foi pra Itália buscar a Cocanha.
Foi assim:
Num belo dia de cerração, o Nanico saiu a pé, lã de Nossa Senhora das Grotas, interior do glorioso município de Caxias do Sul. Tinha vendido a velha tobata pra comprar a passagem de avião e agora vinha leve, só com a roupa do corpo. Afinal de contas, no País da Cocanha ele não ia precisar de dinheiro nem nada. Quando quisesse alguma coisa, bastaria ir na loja pegar.
Chegou no centro de Caxias era noite, a cidade vazia. Parou na praça pra respirar. Então veio um homem e sentou colado nele:
— E aí, gurizão, buscando alguma coisa?
— A Cocanha — disse o Nanico.
— Bá! — fez o homem — Hoje eu tô sem. Mas posso te ajudar com outras paradas…
O Nanico achou o cara gentil. Resolveu perguntar:
— Sabe como se chega no aeroporto? Tô indo pra Itália!
— Ah, l’Itália… Que bonitinho — suspirou o homem.
E ofereceu carona pro Nanico.
Perto do aeroporto, o desconhecido estacionou numa rua escura.
— Então, gurizão, em troca da carona quero que tu me faça um favorzinho…
— Tá me estranhando? — disse o Nanico — Pode pedir o que tu quiser.
Aliviado, o homem pousou a mão peluda no ombro do Nanico e disse:
— Aqui tá difícil encontrar os documentos antigos da minha família pra conseguir a cidadania italiana. Já que tu tá indo praqueles lados, tu poderia passar no cartório de Pedavena por mim?
O Nanico prometeu que sim. Aí o cara o deixou no aeroporto e, na despedida, declamou uns versos de Lorenzo de’ Medici:
Como é bela a mocidade
que, porém, logo escapa!
Quem quer ser feliz que seja:
do amanhã não há certeza.
— Vai, Nanico — recomendou o desconhecido — Pega esse avião pra São Paulo. E aguenta firme aquelas doze horas esperando a conexão pra Milão!
2. Nanico no aéreo
O Nanico estava sobrevoando o Atlântico, lambendo os beiços pela lasanha que serviram no avião. Sem falar no vinho: parecia um suquinho, em comparação com o tinto ardido que a família dele fazia na colônia.
O Nanico não tinha nem saído do espaço aéreo brasileiro, mas já se sentia na Terra da Cocanha.
— Que poltrona macia — disse ele pro vizinho.
Mas não teve resposta.
— Que temperatura amena — insistiu o Nanico.
Mas não teve resposta.
Aí passou a comissária de bordo e explicou que ele tinha de falar italiano.
— Porco giuda — disse o Nanico — Lá nas Grota só aprendi os palavrão.
Ela fez uma carinha de dó e foi falar com o piloto. Em seguida, ouviu-se uma mensagem:
— Atenção passageiros, é uma emergência. Favor apresentar-se urgentemente alguma profe de italiano.
E foi assim que o Nanico conheceu a Leona. Uma guria com cabelos de espaguete e perfume de manjericão.
A comissária de bordo conduziu o Nanico e a professora até a biblioteca do avião, ao lado dos banheiros, passando uma porta escrita “não entre”. Piscando o olho, a comissária disse:
— Onde vocês acham que a gente aprende a falar tantas línguas? A biblioteca é o segredo dos trabalhadores aéreos.
E declamou uns versos de Alda Merini:
Amor,
voa até mim
com o avião de papel
da minha fantasia
e com o engenho do teu sentimento…
— Meio literal demais essa tradução — comentou a profe Leona, e a comissária de bordo foi embora prometendo caprichar mais da próxima vez.
***
A professora começou pelo básico.
— Eu é io. Tu é tu. Ele é lui. Etcétera é eccetera.
E o Nanico foi guardando tudo na cabeçona dele. De olhos fechados e boca aberta, pra fixar melhor a aprendizagem e degustar o perfume de manjericão da Leona.
— Basilico… — ele murmurou.
— Bravo! — disse a profe, e percebeu que ele estava pegando no sono.
Pensou em parar a aula. Só não parou porque viu que o Nanico estava todo arrepiado. E que ficava mais arrepiado ainda quando ela chegava bem perto do ouvido dele pra ensinar os verbos: o passato remoto do qual ele estava se afastando, o futuro semplice com o qual ele sonhava…
3. Nanico pousa
O Nanico aprendeu tão bem o italiano que incorporou inclusive o latim. Acordou declamando Virgílio:
Litoreis ingens inventa sub ilicibus sus
triginta capitum fetus enixa iacebit,
alba, solo recubans, albi circum ubera nati:
hic locus urbis erit, requies ea certa laborum…
— Ou seja — traduziu a comissária de bordo, entrando na biblioteca:
Verás uma grande porca branca
sob os carvalhos na beira do rio,
com trinta porquinhos branquinhos mamando:
ali é o lugar do teu alívio…
A profe não teve tempo de criticar a tradução, já que a comissária veio avisar “o casalzinho” de que estavam chegando em Milão.
— Casalzinho? — retrucou a Leona.
E o Nanico a acompanhou na negação:
— Olha bem se eu vim pra Itália namorar uma brasileira!
— Ítalo-brasileira — a Leona corrigiu — Graças ao escritório Chiassi & Fracassi.
— Que coincidência — disse o Nanico — Eu também obtive a cidadania italiana graças ao escritório Chiassi & Fracassi.
— Você sabia, Nanico, que o escritório Chiassi & Fracassi tem cinquenta anos de experiência?
— Oh, sim, Leona. E você sabia que ele foi eleito sete vezes o melhor escritório das Grotas?
Pena que o escritório Chiassi & Fracassi só patrocinou este folhetim a partir do terceiro capítulo. Se tivessem aparecido antes, podíamos ter passado o contato deles para o desconhecido, em troca da carona que ele deu pro Nanico, lá no começo da história.
Agora somos obrigados a ver o Nanico cumprir o pacto de ir até Pedavena procurar os documentos daquele cara.
Mas pelo menos o escritório Chiassi & Fracassi convenceu a Leona a acompanhar o Nanico até o Vêneto. Parece que prometeram depois um trampo de babá pra ela em Milão.
— Ué — disse o Nanico — Tu não é professora?
— Quieto! — ela cutucou — Se os italianos ficam sabendo que eu fiz faculdade, não me dão emprego nenhum.
Decidiram ir de trem pra Pedavena. No aeroporto mesmo tinha uma estação: ah, o sistema de transportes no País da Cocanha.
A Leona foi ao banheiro enquanto o Nanico foi comprar as passagens. Ou pelo menos era esse o combinado.
4. Nanico no trem
O Nanico estava tentando ver alguma coisa através da neblina que embaçava a janela do trem.
— Me avisa se tu enxergar a porca branca — ele disse — Aquele sonho que eu tive no avião é um presságio.
Então apareceu o cobrador. Vinha pelo corredor, de passageiro em passageiro, conferindo se as passagens tinham sido carimbadas. A Leona cutucou o Nanico. Ele seguia procurando a porca branca no meio da neblina.
— Mostra as passagens pra ele — disse a Leona.
O Nanico fez uma cara de pena pela profe. Ela não conseguia entender que já estavam no País da Cocanha?
— Aqui não tem burocracia — ele explicou — Né, seu controlore?
O cobrador mal esperou o trem parar pra botar os dois pra fora.
***
Era uma estação fantasma. Não tinha nem nome naquele prédio velho.
— Tem muita cara de lugar onde uma porca branca moraria — disse o Nanico, espiando pelas venezianas quebradas enquanto a Leona mordia os dentes de raiva contra ele.
— Olha bem — disse o Nanico — Se tu fosse uma porca branca, tu não viria aqui com teus filhotes?
Ela voou no pescoço dele.
***
Quando a Leona cansou de bater no Nanico, ele colocou o maxilar no lugar e comentou que estava na hora da janta. Tinham duas opções: ou ir até o povoado mais próximo, ou esperar pela porca branca.
A Leona nem respondeu. Apenas levantou, foi pegar a mochila e — cadê a mochila?
Já não tinha mais forças pra bater no Nanico. Só sentou e chorou.
Pra consolar a parceira, ele comentou que na Terra da Cocanha não precisavam de mochila. E concluiu declamando uns versos de Carlo Goldoni:
Dois tipos de pessoa tem no mundo:
a que tira do trabalho o seu sustento
e a que trata de comer sem sofrimento.
Quem pensa seriamente fique longe:
aqui só a pessoa que delira
é digna da nossa companhia.
— Que lógica fajuta — roncou alguém atrás dele.
— A porca branca! — disse o Nanico, e a abraçou como se tivesse reencontrado uma amiga.
5. Nanico Pappetta
O Nanico narrou o sonho premonitório que ele teve no avião:
— Onde eu encontrasse uma porca branca, eu ia descansar. Aqui só faltam os trinta porquinhos pra completar a ceia; aliás, a cena.
— Nasci porca — disse a suína — mas me identifico como javali. E não sou branca: sou rosa. Teu sonho é um poema do Virgílio sobre minha ancestralidade. Teria sido uma homenagem, se na continuação da história minha tata não fosse sacrificada.
— Tadinha — disse a Leona — Mas fica tranquila, eu sou vegan.
Aí foi a vez da Javali abraçar a Leona como uma velha amiga.
***
Elas fizeram uma quirera de janta. O Nanico (cara fechada como o céu lombardo) bem capaz que ele ia comer aquilo. A suína cantou uma nana:
Nananê Nanicó,
que paciência de Jó
tem que ter com as criancinhas
que só querem carninha.
Pro Nanico Pipetta
vamos dar a pappetta…
— Nanico Pappetta! — ficaram chamando ele.
Até que ele juntou do chão uma veneziana.
— Calma, Nanico!
— Calma um repolho! Se tem uma coisa que me irrita é correnteza de ar.
E ficou tentando colocar a velha veneziana num buraco que tinha na parede.
— Ai! — disse a madeira — Devagar, seu imigrante!
O Nanico insistiu ainda, mas foi inútil. A parede não segurava mais nem a si mesma, imagina ter de segurar uma veneziana desengonçada e reclamona.
Ela xingava o Nanico e, ao mesmo tempo, exigia que ele a carregasse de volta pra casa dela.
— Imigrante! Já que tu me juntou do chão, me leva pro Vêneto!
A Leona e a Javali sentiram pena do Nanico.
— Deixa ela aí — disse a profe — Vem com a gente.
Assim a Leona rompeu com o escritório Chiassi & Fracassi, sem se preocupar com as consequências que isso geraria pro Nanico. Agora o plano dela era ir com a Javali para uma fazenda feliz, onde os animais eram cooperativados e dividiam o lucro da venda do leite, dos ovos, das penas…
— É a verdadeira Terra da Cocanha — disse a suína.
Mas o Nanico não se convencia. Cocanha sem carne?
— Nessa hora, de onde eu venho, tá todo mundo fazendo o aperitivo — comentou a Veneziana.
Aperitivo… Nas Grotas do Nanico, isso tinha cheiro, som e sabor de graxa pingando na brasa.
Com a Veneziana nas costas, lá foi ele se babando na direção do Vêneto.
6. Nanico no Vêneto
Foram numa bodega e o Nanico não demorou a entender que “aperitivo”, naquelas paragens, significava se entortar tomando spritz.
Vendo que a Veneziana era uma tchuquetona, o Nanico jogou água nela, pra ela não ficar com dor de cabeça depois. Aí ela voltou a xingar ele de imigrante, o que fez os demais convivas olharem arianamente pro Nanico.
— O que tu veio fazer aqui? — diziam — Quer roubar meu trabalho?
Não esperavam o Nanico responder. Suspeitando que eram tudo um bando de tchuco, o Nanico jogou água neles pra não ficarem com dor de cabeça no dia seguinte.
***
Correndo dos nativos, o Nanico chegou em Pedavena. Foi no cartório, mandaram ele pra prefeitura. Enquanto esperava ser atendido, calculou que, desde a chegada, ainda não tinha visto o sol dourado nem o céu azul do País da Cocanha.
Lhe vieram uns versos de Rosalia Calleri:
Sobre a terra o céu
se abaixa com a neblina
e a envolve em denso véu.
Como sombras são as coisas,
como sombras as pessoas
que passam apressadas.
Cada cara mal-humorada
mesmo sem palavras diz:
“Ah, se eu revisse o sol
como eu seria feliz!”
— Falou o cara que veio “dos trópicos” — um funcionário ironizou — Mas tu sabia que nas Grotas faz menos sol do que em Pedavena?
— Como tu sabe de onde eu venho? — perguntou o Nanico.
— Todo dia aparece um de vocês querendo certidão antiga.
Aí o Nanico pediu os documentos do amigo lá que tinha dado carona pra ele no começo da história.
— Qual é o sobrenome? — perguntou o funcionário.
— Bã… — fez o Nanico.
E ficou tentando descrever fisicamente o fulano, mas pro cara da prefeitura não adiantava.
— Tu pegou carona de noite com um desconhecido, mas não fez a única pergunta que importa pra vocês “descendentes de italianos”?
O funcionário até cogitou sentir pena, mas pensou que aquela era uma boa oportunidade pra desfazer a imagem que as pessoas têm dos vênetos. E decretou:
— Por uma semana, Pedavena vai dar cidadania italiana pra qualquer pessoa que pedir. Avisa teu amigo.
— Tá avisado — disse o Nanico — Estão publicando essa história no portal Silvana Toazza, aposto que ele vai ler.
O que o Nanico não previu é que também os excelentes advogados do escritório Chiassi & Fracassi estavam lendo o folhetim.
7. Nanico sem pátria
No capítulo anterior, o Nanico conquistou a cidadania italiana pra todo mundo que fosse a Pedavena. Inclusive pro tal do Jandriel, aquele que deu carona pro Nanico e cujo nome não sabíamos até agora.
Lá está o Jandriel, aproveitando o passaporte cor de vinho pra virar servente de pedreiro na Alemanha.
Os novos cidadãos italianos até queriam lhe agradecer pessoalmente, mas o Nanico havia desaparecido.
Segundo alguns, a missão terrenal dele tinha acabado. Agora ele estaria ao lado do Grande Tabelião, supervisionando a excelsa tramitação administrativa dos processos de cidadania.
Segundo outros, o Nanico tinha finalmente encontrado a Terra da Cocanha, onde estaria comendo lasanha de bacalhau.
A verdade é que o Nanico foi levado por um par de advogados extremamente competentes e estava de fato comendo uma lasanha, só que de berinjela (pra tu ver o nível de crueldade dos sequestradores).
Forçado a engolir aquela esponja suja e molenguenta, o Nanico foi submetido a um interrogatório:
— Confessas que fostes conivente com a quebra de contrato realizada pela Leona? Ela devia ter te acompanhado até Pedavena e, depois, devia ter ido a Milão pra ser babá dum galguinho italiano.
— Confesso — gurgitou o Nanico.
— Confessas que causasse prejuízo ao escritório Chiassi & Fracassi quando aceitastes a proposta do funcionário de Pedavena? Tua missão era propagandear nosso escritório, e não conseguir grátis a cidadania ampla, geral e irrestrita pra colonada toda.
— Confesso — regurgitou o Nanico.
Nada mais a declarar, os advogados procederam à punição prevista nas letras miúdas do contrato que o Nanico assinou (na noite entre o capítulo 2 e o 3) sem que a gente (nem ele) visse.
***
A moral é que o escritório Chiassi & Fracassi foi tão habilidoso que conseguiu fazer ele perder tanto a cidadania italiana quanto a brasileira.
O apátrida foi desovado naquele labirinto de prédios cansados, turistas inesgotáveis e água verde-musgo com cheiro de peixes medievais: Veneza. Sem documento, sem ter onde dormir, ele perambulava pensando se devia ou não se desesperar.
Aí viu uns versos de Pietro Gori, pichados numa parede:
Nossa pátria é o mundo inteiro
nossa lei é a liberdade
e um pensamento
rebelde no peito!
Do lado, uma porta aberta.
Entrou.
8. Nanico na casa velha
Dentro daquela casa mofada, o Nanico estava escutando um homem cujas bochechas eram duas bolachas daquelas que a alemoada das Grotas faz no Natal: fofas, convexas, cobertas por uma camada de merengue e salpicadas com açucrinha vermelho.
— Que aventura é essa que não tem sequer um caso de amor? — o velho esbravejou e precisou ajeitar a peruca.
Devia ter trezentos anos. Estava sentado numa poltrona de quatrocentos, entre trapos que um dia puderam ter sido seda. Diante dele, uma mesa com uma jarra, um candelabro, livros. Se alguém espirrasse, era capaz de tudo se esfarelar.
— Eu também já perdi minha pátria — disse o homem — Mas o que é viver sem pátria, em comparação com viver sem amor? Gosto de um poema da Patrizia Valduga, uma guria que nasceu 230 anos depois de mim:
Ah, maldito! Amor, ah, seja bom,
rearranja todos os meus fragmentos
pra me fazer ser aquela que eu sou
e que eu era antes só nos documentos.
— Ou seja — disse o veterano — Uma coisa é o que diz o passaporte, outra coisa é o que a gente é. Eu era um cidadão da República de Veneza… Hoje, quem sabe que aquilo existiu? Mas o amor, o desejo, é isso que a gente deixa pro mundo. Giacomo Casanova é sinônimo de mestre da sedução, não de cidadão veneziano. Foi pra eu te ensinar a conquistar mulheres que tu veio me procurar, e não pra eu te conseguir uma cidadania, certo?
— Na verdade — fez o Nanico — eu tô procurando a Cocanha.
— A Cocanha… — o outro suspirou, como se lembrasse de uma antiga amante — O homem que busca a Cocanha deve ser um camaleão capaz de refletir todas as cores do ambiente que o circunda. Deve fingir sempre saber menos do que sabe, deve sofrer em paz (se é um homem honesto) a mortificação de precisar reconhecer-se um hipócrita…
Tomou um gole de vinho avinagrado. Então disse:
— Fala com o Gino Scarseto, um baixinho que mora ali no Rio dei Trasti, sabe? Ele anda metido nuns negócios de gôndola. Pega a primeira à esquerda, passa a pontezinha e segue reto toda vida. Diz que foi o Giacomo Casanova que te indicou. Ele tá me devendo um favor, desde que ensinei ele a se livrar de cancro mole.
O Nanico não sabia como agradecer. Achou melhor não perguntar.
9. Nanico quase lá
O cara estava sentado numa gôndola, fazendo a própria sobrancelha.
— Cocanha, Atlântida, Xangrilá… — disse o Gino Scarseto — Tá ligado que tem uma galera que passou a vida atrás desses picos. Mas nem o Marco Polo não achou nada que preste. É que nem diz meu parceiro Guido Gozzano:
O Infante içou as velas pelo reino fabuloso,
viu as Afortunadas, Duípa, Gorgona, Antilia
e o Mar dos Sargaços e até o Tenebroso
buscando aquela ilha… Mas a ilha não existia…
— Então tu não sabe nada? — acusou o Nanico.
— Sei de alguém que sabe — disse o Gino Scarseto, e fez um gesto de quem espera o pagamento pela informação.
O Nanico buscou algo no bolso.
— Posso pagar com o Rio de Janeiro?
O outro fez cara de que já estava cheio de mar:
— Tu não tem aí um Mato Grosso?
— Só o do sul — disse o Nanico.
— Serve — disse o Gino, guardando o estado numa nécessaire. Depois soltou: — Volta aqui à meia-noite. Vai passar um velho caquético num barco cadavérico. Caronte, o nome dele. Do véio, no caso. Ele manja das parada.
***
Meia-noite veio o velho esquelético, carregando uma montoeira de almas num barquinho. Disse o Nanico:
— Boa noite, seu Caronte. Será que rola uma carona pra Cocanha?
— Mas craro — respondeu o barqueiro — Se empolere aí.
O Nanico se acomodou entre almas penadas e gêmeas, no barco que rompia suavemente a neblina. Nem se sentiam as correntezas do Adriático. Pouco trânsito (um que outro cruzeiro, uma que outra chalupa de imigrantes). E às 6:16 apareceu o sol. Pela primeira vez desde que saiu das Grotas em busca da Cocanha, o Nanico viu o sol.
***
No fim das contas, a Terra da Cocanha (pensou o Nanico) nem era tão difícil de achar. Ficava ali como quem tá indo pro Inferno, dobrando à esquerda antes da Bósnia.
Na praia onde desembarcou (“apeia aí”, disse o Caronte), havia umas placas indicativas, feitas de queijo, frutas, castanhas, pizza. O Nanico se emocionou. Comeu tudo. Aí ficou sem saber pra que lado as setas apontavam…
Foi então que ele viu aquele bando de urubu.
10. Nanico na Cocanha
— Sabem pra que lado fica a Cocanha? — o Nanico perguntou pros urubus.
— Tamos indo pra lá — disseram.
E levaram o Nanico pelo cangote. No caminho, iam explicando. Por exemplo, que eles tinham ido na praia arrumar as placas:
— Elas precisam ser refeitas a cada cinco minutos, tem sempre um passarinho que passa comendo as letras, as setas…
Chegaram voando no centrinho da Cocanha. Ali tinha uns chafarizes de água, de leite e, evidentemente, de vinho. Bem no meio da praça. E macieiras, cerejeiras, bergamoteiras, todas com fruta o tempo todo. Tu ia lá, colhia e logo nasciam outras no mesmo lugar. O que caía no chão era devorado pelos tatus.
— Mmm… tatu… — fez o Nanico, recordando os hábitos das Grotas.
Os urubus pousaram o Nanico como as cegonhas pousam os bebezinhos no colo da mamãe. A mamãe, no caso, era uma cama king size dessas que, em vez de ter pezinhos, é formada por dois colchões um em cima do outro, daí não faz barulho quando o cara faz, digamos, alongamentos em cima dela. O Nanico ficou deitado ali, comendo umas nêsperas que ele alcançava preguiçoso com o braço.
Veio uma turma conversar com ele. Pareciam pessoas normais, usavam camiseta de banda, calça, tênis.
— Curtindo a Cocanha? — uma guria perguntou — A gente tá indo no show dos Ramones, quer ir?
O Nanico não era muito fã dessas coisas, mas ficou pensando que, se tinha show de rock, devia ter também uns baile bão por ali.
— Sabe quando vêm Os Atuais? — ele perguntou na CIC, a Central de Informações da Cocanha.
Não estava previsto um baile com essa incansável bandinha mas, já que o cidadão Nanico Pipetta estava solicitando, o País da Cocanha organizou um bailão pra ele.
Tudo muito bem. Vinho e lasanha todo dia. As pessoas o cumprimentavam. Chovia quando ele pensava que as plantas precisavam de chuva. Esquentava quando ele pensava que queria pegar um bronze…
O Nanico ia pelas calçadas declamando Trilussa:
Tem uma abeia que pousa
sobre um botão de rosa:
suga ele e se vai…
No fim das contas, a felicidade
é uma pequena coisa.
E o Nanico viveu feliz até o dia em que sentiu saudade de ficar triste. Aí achou um dia nublado, desses típicos das Grotas, e ficou vendo a cerração baixar.
Que também com melancolia se faz uma Cocanha.