A sugestão que me deram pra essa conversa é o tema da literatura e da regionalidade, a literatura na regionalidade. Então eu vim com a ideia de pensar, a princípio, sobre essa tendência da literatura brasileira conhecida como literatura regional. Vocês já ouviram falar nisso, certo?
Eu quero, em primeiro lugar, refletir sobre o porquê de o regional ser mal-visto.
Nisso entra a questão litoral x interior, no Brasil, mas também no Uruguai e na Argentina, por exemlo. Essa inferiorização do interior é histórica e não se justifica economicamente: no interior tem muita grana, é daí que vem o dinheiro, nesses países, da agricultura, da pecuária. E isso sustenta muito a política desses locais também. Mas curiosamente a cultura fica seccionada. No Brasil é mais bonito gostar de samba do que de sertanejo. Então o samba não é visto como regional, apesar de ser uma arte nascida e criada no Rio de Janeiro. Por que essa hierarquização?
Quando um escritor diz que não quer ser chamado de regionalista é porque ele não quer ser confundido com o fazendeiro, ou com o peão, ou com o boi. Com o caipira, no fim. Não quer ser identificado como alguém que elogia a suposta ignorância dessa gente. Não quer ser considerado uma caricatura e nem quer que a gente leia a obra dele como se fosse uma caricatura, ou que digamos: oh, que bonitinho esse colono com suas dificuldades e suas superstições…
Ou vai ver é culpa do medo, no Brasil, da guerra civil, da separação dos estados.
É treta antiga. O que o país, esse projeto de país, gastou com abafamento de guerras civis no século XIX e no XX não é bobagem. Daí, na literatura, o cara que é identificado como alguém que falou bem de uma região, tira logo o corpo fora pra dizer que não, peraí, eu não sou “daqueles”.
O segundo ponto importante nessa conversa é distinguir os termos “regional” e “regionalista”, pra chegar à ideia de “regionalidade”.
Não é fácil separar essas coisas; meio que já era, acho. Numa pesquisa simples a gente vê que se usam ambas as palavras pra se referir ao mesmo objeto: se fala tanto em literatura regional quanto em literatura regionalista, com o mesmo sentido.
E aí complica um pouco, quer dizer: aí a gente entende por que os caras não querem ser considerados regionalistas.
Por exemplo: o que é regionalismo no Rio Grande do Sul? É o CTG, o cavalo, essa caricatura. E é bom mencionar o CTG porque se trata mesmo da invenção, a partir de um imaginário, se trata da elaboração de um programa estético, um movimento.
Já o regional parece uma categoria mais neutra, mais científica. Tudo no mundo está em alguma região. A questão é que algumas são mais centrais, a respeito do poder cultural, do poder financeiro, do poder econômico e tal. Mas tudo é região. É uma categoria geográfica, geopolítica.
A literatura, como faz parte do capitalismo, não escapa a essas disputas. Mas friamente, tecnicamente, dizer que algo é regional não é fazer um julgamento de valor. É apenas uma definição. O que inclui um valor evidente é o regionalismo, por esse sufixo: o programa, a intenção, a ideologia.
Assim chegamos no termo regionalidade. Suponho que as pessoas que escolheram esse termo são pessoas que pensam nas palavras, que pesam elas, que tocam elas pra sentir os arrepios.
O que seria a regionalidade? A qualidade do que é regional, a reflexão sobre o que é ser regional, o que está no regional, como se comporta, o que come, onde dorme, e – sobretudo – o que fala e como fala.
A poeticidade do regional: isso seria a regionalidade. É um conceito que nos permite um pouco mais de debate, que nos dá um respiro pra crítica, é um sufixo que nos dá margem pra aprofundar as ideias, os sentimentos. É mais tolerante.
Divindade… Eu não acredito em Deus, eu acredito na divindade. Melhorou, né? Divindade são os personagens. São os mitos maravilhosos que compõem o repertório literário universal desde sempre. Intelectualidade, em vez de intelectualismo. Homossexualidade, em vez de homossexualismo.
Esse seria o terceiro ponto: a regionalidade é uma questão de linguagem, uma questão de especificidade das regiões.
É por aí que o ditado deve ser entendido. O título da nossa conversa aqui é uma brincadeira, evidentemente. “Fala da tua aldeia e serás regionalista” é o que acontece, no Brasil, na América Latina. Mas vamos pensar além: não é pra ser “fala da tua aldeia que tu vai ser um caipira”; é pra ser “fala da tua aldeia que tu vai falar da especificidade da tua aldeia”.
Por isso não é “falar da tua aldeia” apenas: o importante é falar do jeito que se fala na tua aldeia, como se fala lá.
Assim acontecem coisas marcantes como os causos do Simões Lopes Neto, o Martín Fierro, os contos do Guimarães Rosa. As lendas todas, a literatura indígena, os mitos: isso é o legítimo “fala da tua aldeia como se fala na tua aldeia”, é a legítima literatura que expressa a realidade do povo, a diversidade.
Mesmo no que se considera central, como São Paulo, se não houvesse acima de tudo a visão enviesada, ou seja, com o viés preconceituoso que separa o centro da periferia, mesmo em São Paulo se pode falar em literatura e regionalidade. O que é a obra da Carolina Maria de Jesus senão uma marca da especificidade de uma região, de um povo, de uma época? Se fosse gaúcha, ela seria regionalista? Ali está também a regionalidade: a poética de uma região, a favela do Canindé, daquelas famílias que ela retrata, do modo como ela retrata.
Parece que no fundo, então, se trata de uma questão de sotaque, de língua x linguajar. Adivinha, dessas duas palavras, qual é a atribuída ao regional, ao periférico. E adivinha em qual lado está a maior criatividade formal, fonética, sintática, lexical. No lado da gramática oficial ou no lado do sotaque?
Falar em regionalidade é falar de variação linguística.
Pena que eu não tenho mais meu primeiro livro, que é sobre isso. Mas em todos os outros essa é a briga. Falar de como se fala, de como se traduz a fala na escrita, falar de gente que fala diferente…
Por isso, talvez, alguém pode ler o que eu escrevo e dizer que se trata de literatura regional. E eu vou dizer: tudo bem. Porque o contrário disso costuma ser pasteurizado. Eu aceitaria o rótulo de regionalista, provisoriamente, porque a pasteurização é que seria um problema, pra mim. Excluir das histórias, e das pessoas, o que elas têm de diferente, de específico.
O mel, digamos. O leite. Cada vez que tu pega o mel numa caixa de abelha sai um mel diferente. Depende da floração, depende do pasto. No caso do leite, depende do pasto.
Esses dias eu fui na feira, quis comprar queijo serrano, e o feirante me pediu desculpa. Bá, diz ele, triste. Enquanto não trocar o pasto, não tem…
Eu digo: Ué, tudo bem. A gente espera.
Só que daí tu vai no mercado e tá lá o queijo nas partilera, milhares de opções. Comé que tem queijo todo dia, sempre o mesmo?
Pasteurização.
A literatura distópica mostra isso direitinho. O fim do mundo é sempre o fim das diferenças. Um planeta todo deserto, ou todo gelo, ou um prédio cinza onde todo mundo age que nem robô. Isso seria o extremo oposto da literatura considerada regional. Por isso eu diria tudo bem, se me “acusassem” de regionalista. Porque tem coisa pior.
Mas eu ia chamar a pessoa pra conversar. Pra aprofundar na ideia. É isso que estamos fazendo aqui.
Quando a gente conta alguma coisa, a gente usa um jeito específico de contar. Esse é meu ponto. Usar “você” em vez de “tu”, por exemplo, num conto, sendo que os personagens são de Porto Alegre. Fica aquele “vocêa…” Sabe? A opção pela neutralidade, uma suposta neutralidade, é isso que eu chamo de pasteurização.
A justificativa quase nunca é linguística, e me parece que a literatura é muito linguística, não vejo uma separação. Não se trata, pra mim, de “eu tenho uma história pra contar e quanto menos atenção eu chamar pra linguagem melhor, mais fácil pro leitor, mais fácil pra divulgar”. Eu acho que a literatura tem que contar histórias dum jeito que é legal de ouvir, de ler. O melhor contador de piada é o que te faz rir não pela piada, mas pelo jeito que ele conta. Por que o Chico Vendedor Raíz é bom?
Não precisa ser do interior pra fazer isso, pra contar bem, pra escrever de modo criativo. Óbvio que não. Mas no interior, olha bem essa palavra, no interior é que a gente guarda as coisas mais preciosas.
Ou então essa outra: ser tão…
A categoria de sertão, que no senso comum representa um deserto, a seca, foi muito bem representada na literatura brasileira. Sertão, na verdade, é tudo que não é litoral. Sertão quer dizer “terra adentro”. Quer dizer, o Brasil profundo. Isso é a literatura regional? A literatura do Brasil profundo?
Não será ela, então, a literatura profunda?
Não precisa ser do interior pra fazer uma literatura criativa, mas é pela periferia que surgem as coisas mais espontâneas. No centro, olha bem o centro, o centro é infértil. Se tu plantar alguma coisa, vão derrubar pra fazer um estacionamento. No centro, as coisas estacionam. A língua estaciona. É a gramática normativa, o dicionário.
Vocês sabem: as expressões surgem dos lugares mais remotos e recônditos. Surgem por desvio, por erro, por atalho, por necessidade. Aí vão se aproximando do meio, vão começando a fazer parte da fala de mais e mais grupos, até chegar na elite, digamos, e então entra no dicionário. Quando entra no dicionário, já tá desatualizada. Já perdeu vitalidade lá onde ela nasceu. Lã na região de origem dela.
Esses tempos, quando estavam revisando esse livro aqui, A lenda do corpo e da cabeça, a revisora achou estranho que tinha um Lã em Camaquã no texto. Achou que fosse erro, nunca tinha ouvido alguém dizer lã. Mas vocês sabem, né: tem uma baita duma diferença entre lá e lã. Lá é ali ó. Lá é na porta ali de saída. Lã não. Lã é longe pra burro. A guria, a revisora, ela é de Porto Alegre. Não tem culpa disso. Assim como o pessoal de São Paulo que se cria num apartamento não tem culpa disso. Mas vai fazer falta, às vezes, algum conhecimento rural. Se o cara for interessado, ele vai viajar, ler, perguntar. Senão, ele vai dizer: ah, isso aí é regionalismo…
A literatura é como falar alguma coisa. É isso que o Tolstoi quis dizer: fala aí do jeito que se fala na tua aldeia, do jeito verdadeiro. Quer dizer: mostra a verdade do teu povo que tu vai ser universal.
Porque a gente quer saber a verdade dos povos, das pessoas. Não a caricatura.
Quero propor um outro conceito, que desenvolvi com um amigo que se criou na Argentina, o Augusto Quenard.
É um conceito útil pra quem não é completamente rural, ou seja, regional no sentido pejorativo, mas também não é completamente urbano, ou seja, cosmopolita, central.
O conceito se chama “bairro interior”. Uma ideia que junta o bairro como constituição social, geográfica, antropológica, e o cenário original em que cada um se criou e que carrega na própria mente. Ou nas próprias vísceras, no próprio ventre.
Um bairro interior é ao mesmo tempo o bairro de cidade do interior, onde a gente jogava bola no meio da rua, e o bairro mental onde continuamos jogando bola no meio da rua.
No bairro real, a Dona Neura ameaçava furar a bola quando caía nas flores dela. No bairro mental, quem ameaça furar as bolas são as nossas próprias neuras.
O bairro interior se forma na infância. Sair dele caracteriza a maturidade e voltar pra ele de vez em quando, de passeio, te faz entender tuas origens, te faz ver como tudo já tava lá.
Como conceito literário, é útil pra quem escreve, porque o bairro interior é uma espécie de armazém cheio de personagens, formas e situações. Um bolicho, um galpão. Uma mina, um poço.
O escritor passa todos os anos de formação dele, muitas vezes involuntariamente, mas sempre obrigatoriamente, imerso numa pesquisa antropológica, sociológica, artística, histórica nesse bairro interior – nesse bairro anterior –, que pode acabar virando um topos, um tema central, recorrente, um terreno pra debater em cima dele.
Existem muitos autores que escrevem sempre sobre o mesmo cenário, outros sobre os mesmos dramas. O que são todas aquelas traições e perversidades na obra do Nelson Rodrigues senão o bairro interior dele? Ou então o João Cabral de Melo Neto, que morava no Rio de Janeiro, e foi diplomata brasileiro na Espanha e ficava escrevendo sobre o sertão pernambucano? Guimarães Rosa a mesma coisa, diplomata na Alemanha.
O bairro interior é uma paixão, algo só teu, transferível apenas em forma de arte, que vai ser sempre insuficiente, insaciável, mas só tu pode falar dela com propriedade.
O bairro interior é o Complexo de Édipo do escritor.
O bairro é a melhor estratégia de resistência à homogeneização cultural. É a constituição social mais viva e segura que uma comunidade pode ter. As pessoas num bairro ainda se cumprimentam, sabem onde mora o Fulano, acudem quando tem algum ferido. Só num bairro as crianças podem ir a pé pra escola. Ou fugir dela sem grandes consequências.
Unindo, portanto, o bairro real e o bairro metafórico, dá pra concluir que o escritor que se cria em bairro recebe de graça uma fonte inesgotável com que muitos leitores serão capazes de se identificar.
Pro escritor provinciano, é uma maneira de botar em prática a frase do Tolstói: se tu quer ser universal, fala sobre o teu bairro interior.
Pra terminar, eu tenho ainda umas reflexões, é o que venho pensando atualmente.
O regionalismo acabou. Eu acho que temos que fazer um luto da literatura regional. Do conceito, pelo menos. Não é rechaçar tudo que se vende com essa categoria. Isso é coisa de quem vai pra cidade e fica dizendo bá, na serra não dá, no interior não sei o quê.
Não é rechaçar. É aceitar que acabou, que não serve mais pra trocar ideia. Nem pra dar aula. É um conceito que envelheceu, e que já nasceu capenga. Quem faz questão de usar tudo bem, pode usar como nicho, como objeto de culto religioso, ou fúnebre, como o CTG, as sociedades italianas, as alemãs, pode até servir pro turismo. Mas pra literatura… não sei se um dia alguém sentou pra escrever pensando “vou escrever um livro regional”. Na melhor das hipóteses, a pessoa quis registrar um local, uma fala, um povo. Na melhor das hipóteses, essa categoria serviu, cem anos atrás, pra que dessem bola pra escritores e obras que, se não tivessem essa propaganda, a gente não conheceria. Ou seja, o termo “regional” é isso: funcionou como propaganda, se é que funcionou, e agora não me parece que funcione mais.
Uma literatura desde sempre só existe em contato com todas as outras. Em diálogo. Com todos os tempos e regiões. É um infinito hiperlink. A gente vai e volta. Ou vai e não volta nunca mais.
Outra coisa que venho pensando é que é uma falácia, ainda, a ideia de que não é preciso estar num importante centro urbano pra trabalhar com literatura. Quer dizer, tu até pode não estar no centro urbano pra dar aula, pra escrever, mas pra que alguém te leia tu tem que estar num lugar maior, num grupo maior. Não adianta morar no campo e acessar tudo pela internet. Ainda é necessário fazer contatos pessoais, e frequentes, pra que alguém dê bola pro teu texto. O contexto, ainda, é fundamental pro teu texto.
Por isso é importante encontros como esse, na academia, nas escolas, nas livrarias, nas feiras, nos bares, nas casas, entre pessoas que querem ler e falar de linguagem e de literatura. É o modo que os interioranos têm de tornar maior o próprio bairro.
(Abertura do semestre no curso de letras do IFRS, em Bento Gonçalves, 13 de agosto de 2025)