Bairroça

Vamos dizer assim: bairroça. Uma periferia colona, um arrabalde rural, no interior do Rio Grande do Sul. Com gente que tinha vaca e entregava leite de casa em casa, com a guria que passava pedindo a lavagem pros porco, a Clair, o nome dela, que só agora, escrevendo o nome, eu me dou conta que é francês: mas nós dizia Claír, assim, no bairroça.

O pai dela consertava fogão. Um dia os ratos fizeram ninho no fogão lá em casa, no forno, ficava tudo a lã de vidro pra fora, uma chorna, aí veio o pai da Clair consertar. 

A Clair tinha o primeiro videogame que eu vi na vida, um Atari, que era bem o que eu sentia pela Clair, vendo ela pegar aquele controle, ele dimpé, em forma de, digamos, câmbio de chevette. Eu olhava pra tudo, menos pra tela da televisão em preto e branco, uma baita tevê, na sala. Consertar fogão era classe média, no bairroça.

Com a Clair, quando ela não tava de casa em casa pedindo lavagem ou jogando videogame, a gente comia bolacha com areia, pra fazer de conta que era – não manteiga – margarina.

Refrigerante de groselha. E tinha até groselha mesmo, a frutinha, num canto espinhento lá de casa.

De menhê, no sotaque herdado da pátria-mãe Vacaria, de menhê, pelas cinco seis horas, um certo rumor de pata de cavalo na estrada de chão, como se chamava a rua sem calçamento. E também tiros, do outro lado da janela, como no dia que acordei ouvindo a morte dum vizinho, ou como nas vezes que miravam nossa janela mesmo: ficou a vida toda aquele vidro da sala com uma fita marrom tapando (na época só existia fita marrom).

E os baile, no salão de baile, um galpão que ficava no pé do potreiro que a gente cruzava pra ir pra escola, nas margens da própria bairroça. Os bailes eram frequentados não só pelos qüeras, mas até pelos magrão do grupo de passinho, que ficavam na esquina ouvindo discoteque, debatendo se era melhor uma égua véia, uma Agrale XL ou uma motosserra RD 135, Yamaha.

Deus o livre.

Sobre o bairroça eu vivo escrevendo esses textos. Um dia paro, vou parar, parei.

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