Existem dois personagens notáveis na serra gaúcha do século XIX. Um kaingang que, a partir dos onze anos, passou a viver entre brancos, e um alemão que, a partir dos onze anos, passou a viver entre indígenas.
O primeiro recebeu o nome de Luís Antônio, mas era mais conhecido como Luís Bugre. Foi parar entre os brancos do Vale do Caí porque levou um tiro, numa noite lá em que os kaingang estavam pegando comida nas lavouras dos alemães. Acabou sendo criado por um brasileiro que vivia entre os colonos, ali pros lados da Feliz. Luís Antônio aprendeu português, aprendeu alemão, serviu de guia montanha acima, quando chegaram também imigrantes italianos.
O outro guri se chamava Jacob Versteg. Descendente de uns van Steeg que moravam na Holanda. Jacob foi parar entre os kaingang porque foi sequestrado junto com a mãe e a irmã. Um dos sequestradores era o Luís Antônio.
Luís Antônio não gostava que o chamassem de Bugre. Daí o pai do Jacob falou o que não devia, num bolicho… O sequestro da família (todos menos o ofensor, que se salvou porque não estava em casa) foi uma vingança, segundo a versão dos colonos. A versão do indígena não sabemos.
A mãe e a irmã do Jacob sumiram. Já o guri viveu anos com os kaingang e, quando voltou a morar com os brancos, ficavam chamando ele de Jacó Bugre.
Ele não gostava disso, segundo a bisneta dele.
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Com minha companheira Mônica, que estuda literatura kaingang, fui conhecer o cemitério luterano em que o Jacob foi enterrado. Naquele momento, tinha só um casal de idosos visitando outra lápide. Quando estavam indo embora, se aproximaram pra nos perguntar se éramos parentes dos Versteg. Explicamos que apenas nos interessávamos pela história local, aí a senhora contou que era bisneta do homem.
Qual é a probabilidade de tu ir no cemitério e encontrar a única descendente do personagem que tu foi visitar?
Perguntei se o que os livros dizem sobre o Jacó é verdade. Tudo verdade, disse ela.
Sobre o Luís Antônio, com ela eu não falei. Vou esperar conhecer algum descendente dele também.
Aí vou perguntar se ele sabe que seu antepassado faz parte da história de um duplo, composto por um kaingang que vai parar entre os alemães quando tem onze anos e um alemão que vai parar entre os kaingang quando tem onze anos. Vou perguntar se ele sabe a história de um kaingang que aprende alemão, vira guia, vira mateiro, é ofendido por um colono, sequestra o filho desse colono, um guri da idade que o kaingang tinha quando também foi sequestrado, aí o alemãozinho aprende kaingang, vira guia, vira mateiro… Nessa história, é com onze anos que os guris são obrigados a viver do outro lado. Talvez porque onze são dois um: um ao lado do outro, um depois do outro, não um mais um. Onze é mais do que o máximo, que é dez. Onze tem que contar diferente, acabam as mãos. E acaba a infância. A partir do onze é o infinito, a invenção.