Aí o gringo lá da colônia veio pra cidade e viu, numa encruzilhada, um pouco de farofa, um tanto de pipoca e uma garrafa de cachaça. Tudo misturado com vela colorida.
— Que será que… — diz ele, encucado.
Achou um desperdício, na verdade: “Esse povo da cidade…” Mas por via das dúvidas não mexeu em nada.
Seguiu o rumo pro banco, ou pro INPS, essas coisas que os colonos vêm fazer na cidade, onde teve que esperar uma, duas horas. Pra passar tempo, puxou assunto com as pessoas da fila (era um gringo; se fosse alemão, ficava quieto).
Contou que tinha visto comida na esquina, misturada com vela colorida. Então uma mulher explicou:
— Isso aí é feitiço pra ficar rico.
— Não — disse outro. — É pra arrumar noiva.
— Capaz — disse um terceiro. — Vela é pra recuperar coisa perdida.
O gringo voltou pra casa com aquilo na cabeça. Ficar rico? Ele queria. Arrumar noiva? Tudo que ele precisava, desde que a Loiva tinha largado dele. Recuperar coisa perdida? Com certeza: pelo menos aquele metro de terreno que o vizinho tinha avançado.
E foi juntando as coisas. Colheu mandioca, fez farofa. Colheu pipoca, fez pipoca. Vela ele só tinha branca, então pintou umas de azul, com mata-bicheira; umas de vermelho, com raspa de pipa. E na hora da cachaça ele pensou: “Se eu fosse alemão…”
Como não era, decidiu usar graspa.
— Os espíritos nem vão notar a diferença — diz ele.
Tá.
***
Sexta-feira treze, botou tudo na encruzilhada (uma pessoa lá no INPS tinha ensinado como se faz). E esperou.
Esperou na própria encruzilhada, que era curioso esse gringo.
Onze e meia, eis que canta o urutau. E o gringo ali, firme.
Quinze pra meia-noite, fecha a cerração — e o gringo ali, firme.
Meia-noite em ponto, passa voando uma coruja — e o gringo ali.
Meia-noite e um: aquela voz do Além — e o gringo amoleceu as pernas.
— Ostregheta! — diz ele, ou seja: Orra!
E surge o homenzinho das trevas, já destapando a garrafa de graspa e dizendo:
— Ció, sioro, te me gano ciamato a io? — ou seja: Então, senhor, tu me chamou?
— Porco can! — diz o gringo.
— Esattamente — responde o outro — Em que te posso ajudar?
***
O gringo seguia lá na encruzilhada, diante do Berliche. Aquela cerração. As corujas e os urutaus chorando pra lá e pra cá. Atrapalhando o entendimento do talian que os dois falavam.
— Col tuo sangue… col tuo sangue… col tuo sangue… — dizia o Diabo, tentando fazer uma voz grave (a graspa ajudava).
Isso de “col tuo sangue” já era lá pelo meio da conversa. O Demo não tinha tempo a perder (imagina, atender todas as encruzilhadas do mundo nas sextas-feiras treze: pior que isso, só o trabalho do Papai Noel).
O gringo contou que tinha ido na encruzilhada, de pipoca e farofa, atrás de riqueza, noiva e terra. Aí o outro explicou que isso tinha um preço. Sentindo o sufoco no bolso, o colono perguntou que preço — e o Berliche, nítido e obscuro, respondeu “com o teu sangue” três vezes, conforme o protocolo.
— Ok — disse o gringo, que falava também inglês — Onde eu assino?
O Advogado tirou um livro do rabo e entregou pro homem.
— Nanetto Pipetta — leu o gringo — Ma é meu parente!
— Justo — disse o Diabo — Assina aí embaixo do nome dele.
Nanico Pipetta, ele escreveu.
— E agora?
— Ora mi son el to paron — disse o Berliche, e traduziu, por saber que estamos lendo: Agora eu sou o teu padrão.
Traduziu errado, o Diabo não tá nem aí.
Mandou o gringo de volta no banco. Lá, segundo o Demo, teria uma quantia que faria qualquer colono se sentir rico.
— Preciso entrar na fila? Não posso baixar pelo celular? — perguntou o Nanico.
Aí o outro fez uma cara assim de quem já tinha firmado há séculos um pacto com o sistema bancário. O gringo só baixou a cabeça e mudou de assunto:
— E la morosa? — ou seja: E a noiva?
— Eco — ecoou o Berliche.
E súbito surgiu a Loiva na encruzilhada, com os três filhos que ela tinha feito com o Ivan — aquele traste que largou a família pra ir morar no Apanhador.
— Orca… — começou o Nanico, ou seja: Uta…
Só restava a esperança de recuperar aquele metro de terreno do vizinho.
— Esse vai ser mais complicado — disse o Sete Pele, em brasileiro perfeito. — Eu não tenho como mexer nisso.
— Ué — disse o gringo, entrando também no dialeto local. — Tu não é o Berliche todo poderoso das malandragens?
— Acontece que… antigamente, antes dos colonos chegarem, isso aí já era terra kaingang. Pra negociar aquele meio metro ali, tu tem que falar com outras entidades…O rosário de bestemas e putanadas que o Nanico soltou não estão catalogados em nenhum dissionário colono.