Ele andava de sobretudo, chapéu preto e um tarô do Aleister Crawley no bolso. Era um corvo, entre as pilhas iluminadas de Fritjof Capra e Deepak Chopra (trava-línguas que estavam entre os mais vendidos naquela época). Fazia anos que eu não via aquele amigo. Como os místicos não acreditam em acaso, ele me convidou pra celebrar o destino bebendo no MARGS.
No café, pedi que ele falasse sobre a sociedade secreta dele, que me descrevesse algum ritual – nem precisava ter a ver com sangue ou catacumba. Mas meu amigo era um ocultista de verdade; não parecia sentir prazer em atiçar os curiosos. Apenas comentou que tinha aprendido a transformar cascalho em ouro – o que soou menos como gabação do que como justificativa pra bebermos no MARGS, em vez de num boteco.
Estávamos debatendo se Paulo Coelho era mesmo tão ruim – aí eu vi o livro. Um retângulo verde sob uma cadeira vazia. Ninguém por perto. Podia ter caído de uma bolsa, ou do céu. Fui pegá-lo, ou ele levitou até minhas mãos.
The fourth bear. Jasper Fforde, o autor.
Fiquei segurando o livro, com preguiça. Na capa, entre propagandas (“um best-seller do NY Times”), um urso observa uma casinha branca na floresta. Dentro, quatrocentas páginas de letras miúdas em inglês.
O discípulo do Aleister Crawley informou com gravidade:
– Foste escolhido.
Aí ele transformou um palito de dentes em um lápis e psicografou uma dedicatória, sempre em inglês, que traduzo:
“Para o Paulo, em Out., 29, 2007
Este livro, encontrado por ti neste dia, vai ser (in)dispensável em um momento futuro. Não importa quando, por que ou pra quê. Apenas fica com ele. E ACREDITA.
Escrito por um espírito – EU”
No original, a palavra que traduzi por “(in)dispensável” é unvaluable. Será que o fantasma quis dizer invaluable? Que, em vez de “sem valor”, o livro se tornaria “valoroso demais” no futuro? A Fortuna ainda não favoreceu um reencontro com meu amigo místico, pra eu poder consultá-lo sobre isso.
Não li The fourth bear. Nem preciso ler. A dedicatória psicografada o transformou num talismã: um objeto cuja utilidade está além dos seus aspectos técnicos. Uma coisa simbólica demais pra ser útil ou inútil. A função de um talismã depende unicamente de quem o possui. Mas que significado eu poderia dar pra esse livro?
Já tive uns cinco exemplares do Quarto de despejo. Li e dei todos de presente, que o sentido da obra da Carolina Maria de Jesus é ser lido por todo mundo. Mas não consigo passar adiante esse Quarto urso que me dá preguiça de ler. Até hoje, ele só representou um objeto a mais pra eu encaixotar nas mudanças.
Quem sabe se virando assunto de crônica ele ganha um destino minimamente transcendente?