Porto Alegre é perto

Assim teria dito o jovem Josué pra sua mãe, quando decidiu ir à capital de trem. A senhora querida, com a desculpa de que tinha medo da máquina descarrilar perau abaixo, não entendia que seu filhote buscasse uma vida além da que se alcançava sobre o lombo da mula. 

Porto Alegre é perto e vou lá ver a orquestra, teria dito o jovem Josué. 

Orquestra é coisa de rico, teria dito dona Cinzia. Aliás, capital é coisa de rico, teria acrescentado.

Mas o guri nem queco. Era o que dava ficar viúva. Sem pai em casa, as crianças deixavam logo de ser crianças.

Mas por que orquestra? Isso é coisa de alemão luterano. Em vez de botar o dinheiro numa saudável imagem de santo, ficavam comprando violino.

Quer tocar piano, tem o órgão que o padre te ensina, pensou em dizer também. Mas aí tinha o risco do Guri querer entrar pro seminário. E a vaga de padre tinha sido reservada pro Jeremias, sétimo filho, pra evitar que virasse lobisomem.

Melhor não dar ideia: vai, vai pra Porto Alegre, quebra sem dó o coração da tua mãe, acaba com a possibilidade da gente ter um parreiral com aquela uva nova, em vez dessa isabel mixuruca que metade do cacho nem amadurece.

Mas o jovem Josué nem queco. Foi pra Porto Alegre ser garçom. 

No Club dos Caçadores, fez amizade com o pianista. Aprendeu. Voltou na Páscoa falando brasileiro perfeitamente.

Meu Deus, uma negra, teria dito a dona Cinzia, quando conheceu a nora.

Ainda se fosse uma alemoa luterana. Que não soubesse rezar mas que pelo menos fizesse conserva de pepino.

Por que não me mata duma vez? Uma dançarina! 

Porto Alegre é perto, mãe, posso voltar toda folga.

Em silêncio, no intervalo das rezas, dona Cinzia mordia os lábios: que se quebre esse trem. 

***

Esta crônica é baseada na história de Josué Ologna, nascido na Colônia Caxias em 1899, morto em Porto Alegre no ano de 1986. Pianista autodidata, foi um grande entusiasta do trem que ligava a Serra ao mundo. Compôs a famosa tocata em Ré “Para seguir adiante”, que estabelecia um diálogo musical com seu colega Heitor Villa-Lobos, autor do “Trenzinho do Caipira”. Agradeço à Mônica Chissini pelas informações preciosas durante esta pesquisa; ao Augusto Quenard pela revisão técnica; e à família Ologna pelo acolhimento durante as entrevistas sobre esse delicado assunto.

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