Com o amigo Augusto Quenard, temos um conceito literário chamado “bairro interior”. É uma ideia que junta o bairro como constituição social, geográfica, antropológica e o cenário original em que cada um se criou e que carrega na própria mente.
Um bairro interior, portanto, é ao mesmo tempo o bairro de cidade do interior onde a gente jogava bola no meio da rua e o bairro mental onde continuamos jogando bola no meio da rua. No bairro real, a Dona Neura ameaçava furar a bola quando caía nas flores dela; no bairro mental, quem ameaça furar as bolas são nossas próprias neuras.
O bairro interior se forma na infância. Sair dele caracteriza a maturidade e, voltar a ele de vez em quando, de passeio, te faz entender tuas origens, te faz ver como tudo já estava lá. Como conceito literário, é útil pra quem escreve, pois o bairro interior é uma espécie de armazém cheio de personagens, formas e situações.
O escritor passa todos os seus anos de formação, muitas vezes involuntariamente, mas sempre obrigatoriamente imerso numa pesquisa antropológica, sociológica, artística, histórica nesse bairro interior — nesse bairro anterior —, que pode acabar virando até um topos. De fato, existem muitos autores que escrevem sempre sobre o mesmo cenário. O que são todas aquelas traições e perversidades na obra do Nelson Rodrigues senão o bairro interior dele?
O bairro interior é uma paixão, algo só teu, transferível apenas em forma de arte, que, no entanto, será sempre insuficiente, insaciável, mas só tu pode falar dela com propriedade. O bairro interior é o Complexo de Édipo do escritor.
Como qualquer estudante de arquitetura sabe, o bairro é a melhor estratégia de resistência à homogeneização cultural. É a constituição social mais viva e segura que uma comunidade pode ter. As pessoas num bairro ainda se cumprimentam, sabem onde mora Fulano, acudem quando tem algum ferido. Só num bairro as crianças podem ir a pé até a escola. Unindo, portanto, o bairro real e o bairro metafórico, dá pra concluir que o escritor que se cria em bairro recebe de graça uma fonte inesgotável com que muitos leitores serão capazes de se identificar. Para o escritor provinciano, é uma maneira de botar em prática aquela frase do Tolstói: se tu quer ser universal, fala sobre o teu bairro interior.