O Marco se autointitula goleiro-linha. Um cara que tem uma meta fixa a ser guardada, mas que dá umas escapadas de vez em quando pra explorar o campo.
Este livro deixa isso evidente. É um livro que, na verdade, são pelo menos quatro.
É uma obra dividida em quatro partes que exemplificam a versatilidade do poeta, sem que ele abandone sua base.
Essa base é o poema longo. Essa base é Uruguaiana.
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Na primeira parte desta obra (“saturno leva sempre algo nas mãos”), o Marco parece continuar o trabalho do livro anterior (“Os ternos de Charlie Parker”), em que as memórias se materializam em imagens complexas, com palavras raras e humor dolorido.
A forma dos poemas longos permite uma leitura concentrada, facilita a aproximação do leitor sem pressa.
Este poeta sabe colher poesia dos nomes curiosos (“Matioda”, “Melhorança”, “Tibola”), aproveita seu conhecimento de medicina (“cheirava a asbesto, a um baço removido”), explora atalhos na sintaxe (“que nunca possível era descê-la toda”) e dosa bem os segredos literários (“se os móveis que vão lá felisbertam”).
Sugiro ler este livro com acesso à internet, pra pesquisar as palavras mais difíceis e as referências obscuras.
Sugiro também visitar Uruguaiana.
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O Marco me jurou que não fica contando sílabas.
Acredito, porque ele é de Uruguaiana.
Tem alguma coisa em Uruguaiana que a piazada, se bobear, vira poeta.
Os versos do Marco não fazem esforço pra serem poesia. Eles têm um ritmo de quem está contando uma história em pé, entre amigos, querendo distraí-los com a curiosidade da própria humanidade, mas sem a pretensão de fazer rir.
São gestos, com o potencial dos gestos. Cenas interrompidas. O Marco sabe a hora de dizer “congela!” E vários poemas aqui são como que fotos familiares tiradas de olhos fechados. Epifanias em que é preciso que o leitor faça o exercício de entender a emoção que só o poeta pôde sentir. Como quando alguém te conta uma anedota e tu fica comparando com as anedotas que só emocionam a ti mesmo. E tu te pergunta: será que teria graça se eu contasse isso pros outros?
O Marco, aqui, conta. E fica bom.
Ele canta também. O poema “como estou dirigindo” só falta alguém musicar.
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O Marco é craque na criação de imagens por analogia, como em “um estrangeiro”:
nem como alguém que tenha sido trazido pelo pai para
aula de violão ou corte de cabelo
ou para finalmente recolher aquele brinquedo raro ou
para deslocar o saleiro levemente enquanto almoça no
centro aos sábados
Esse detalhamento é coisa de romancista.
Olha aí “dialética do esquecimento” – imagina um romance sobre o László Ö…
Colocar isso tudo em verso é a prova de um poeta. A prova de que o goleiro-linha é um meia-arqueiro.
Aliás, isso do poeta ser, no fundo, um ficcionista é o que sugere o último poema (“o segredo”).
A chave pra ler o livro todo.