Viver a vida como quem vê uma partida de futebol em que tu não torce pra nenhum dos times. Essa seria uma versão futebolística do lema taoísta “elimina todos os desejos e serás livre”.
Mas não consigo. Tenho sangue, ele me incha. Hincha que nem torcedor argentino.
No dia 18 de dezembro de 2022, teve a final da Copa do Mundo entre França e Argentina. Bem que eu teria gostado de me postar meditabundo diante da televisão, mas não teve jeito. Eu gosto daquele azul celeste listrado com branco. Faço uso diário de erva-mate, de Borges, de Fabulosos Cadillacs. Se sentir o sangue afinar demais, peço dinheiro emprestado para uns amigos argentinos (que valorizam a amizade de modo especial – já viram algum filme do Campanella?), e me curo pegando um ônibus para ir dançar chamamé em Gualeguay.
Estão dizendo que foi a maior final de todas as Copas. Das que eu vi, certamente foi: seis gols: o Messi fazia um, o Mbappe ia lá e fazia outro. Só não teve mais porque os goleiros eram excepcionais. É um jogo desses que justifica o esporte.
Vi a partida em praça pública. Ao meu lado, a trilha sonora do Adriano Chupim: o violeiro caxiense Valdir Verona, um cara de quem ninguém fala mal. No intervalo, ele aproveitou para comentar meu romance. Fiquei tri honrado, pois o Valdir conhece todo mundo e todas as paisagens citadas na minha viagem literária. Viagem que, aliás, se desloca de Caxias até a Argentina.
Percebi que o Valdir entende de futebol tanto quanto entende de música. Vibrava com a marcação cerrada do time celeste e branco. Propunha alterações táticas para conter a velocidade dos atacantes franceses. E, na hora em que o Montiel se preparou para bater o pênalti da vitória, brilhando com seus olhos cor da camisa argentina, o Valdir comentou:
– Montiel é um grande acordeonista. Chamamecero. Vou torcer por ele.
Eu não conhecia o tal Ernesto Montiel. Agora, enquanto escuto “Qué divina eres”, entendo que aquele chute foi como uma cordeona se abrindo pra dar lugar a essas lágrimas que só o rasguido doble tira da gente.
Não precisa gostar de futebol, não precisa estar apaixonado como um eu lírico portenho. Uma das melhores funções da música é suprir qualquer falta de desejo na gente.
Então me veio uma nova ideia pra melhorar o futebol: tocar nos alto-falantes dos estádios, durante jogos da Argentina, tangos, chamamés, chacareras. Durante jogos do Brasil, sambas, maracatus, carimbós. Durante jogos do Uruguai, milongas, candombes, murgas. Durante jogos da França, sei lá. A América Latina vai golear sempre na hora de arrancar emoção pela música.